Desde o início deste Blog, eu tenho insistido que a Economia foca nas decisões e nos valores de uma sociedade em relação ao uso e distribuição dos recursos escassos para satisfazer as suas necessidades. No caso da Economia da Saúde, a grande discussão se direciona em definir e mensurar o valor da saúde nas diferentes perspectivas. Ao determinar o valor da saúde, segue a discussão sobre o quanto de recursos estamos dispostos a disponibilizar afim de obtermos o maior ganho de saúde possível.
Na Economia da Saúde, o ganho em saúde é mensurado tanto em quantidade (aumentar expectativa de vida) como na qualidade de vida (diminuir uma deficiência ou recuperar totalmente a saúde). Dentre as possibilidades em se medir o ganho em saúde, destaca-se o QALY (Quality -Adjusted Life Years), um indicador que mensura, simultaneamente, o ganho em saúde tanto em quantidade como em qualidade de vida. Um QALY representa um ano de saúde perfeita. A medida do QALY é obtida através da identificação e quantificação das preferências dos indivíduos em relação aos tratamentos e aos estados de saúde. Uma das técnicas para se verificar a preferência é o standard gamble, através do qual o indivíduo expressa suas escolhas, variando-se a probabilidade de morte, diante de um cenário de possível cura ou morte com um determinado tratamento. Quanto maior for a preferência, maior será o valor QALY. Mas, será que as preferências sempre estão direcionadas ao ganho de saúde? Provavelmente, não. São vários os fatores que interferem nas preferências dos indivíduos, mas, antes tudo, as preferências estão relacionadas aos valores individuais e aos da sociedade. (Garrinson et al., 2017) Discute-se muito na literatura de Economia da Saúde sobre a preferência das pessoas para que as políticas públicas financiem tratamentos para aqueles doentes mais graves, com maior risco de morte e com maior grau de vulnerabilidade (pobreza), independentemente do quanto um tratamento é eficaz, custoso ou das necessidades epidemiológicas da população. Por outro lado, sendo o sistema de saúde de cobertura universal ou privado, o que passa a ser relevante para a saúde da população pode se contrapôr à saúde do indivíduo (Garrinson et al, 2018). A perspectiva do gestor público, do provedor do serviço privado e do paciente são bem diferentes quanto ao que considerar mais relevante em termos de valor (Perfetto et al, 2017). Se há divergências entre o entendimento do que é um ganho valioso em saúde (Sha et al., 2012; Garrinson et al, 2018), na saúde mental este cenário é ainda mais nebuloso. Todo mundo quer ser saudável e ter acesso a tratamento, porém, pouco se discute a cerca das consequências para a sociedade de tais preferências. Atualmente, há um movimento em prol da promoção do bem-estar e da saúde mental, porém, quais são as preferências da população para o tratamento e cuidado das pessoas com doenças mentais? O que significa ganho em saúde mental? Enquanto que em muitas especialidades médicas, o ganho em saúde seja direta ou indiretamente quantificado pela eliminação de sintomas físicos, recuperação da autonomia física e prolongamento da vida, a delimitação do que é um ganho em saúde mental é bem mais complexa (Razzouk, 2017). Recentemente, no Value in Health de fevereiro 2018, vários autores trouxeram discussões interessantes sobre o valor da saúde e dos elementos que podem ser considerados para que os gestores incluam ou não um tratamento no serviço de saúde. Estes autores propuseram uma série de componentes baseados nas preferências dos indivíduos, mas nenhum dos elementos elencados eram relacionados com a saúde mental. Quando uma pessoa apresenta uma doença mental ela perde muito mais do que a sua saúde. Ela perde o emprego, oportunidades, relacionamentos, direitos civis e muitas vezes, os direitos civis, a liberdade de escolha e a capacidade de gerir a sua própria vida. Os tratamentos permitem que estas pessoas não apenas se livrem do sofrimento dos sintomas mentais, mas, também, recuperem suas vidas, globalmente. O maior ganho em saúde mental é conseguir gerenciar a própria vida, resgatar sua autonomia como pessoa e exercer um papel na sociedade. Mas, este ganho é invisível. Não há ganho em saúde mental sem investimento em tratamento e nos cuidados destas pessoas. Os estudos sobre preferências em relação às doenças mentais mostram claramente o estigma e o pouco valor que muitas pessoas dão ao tratamento das doenças mentais e às pessoas que necessitam destes cuidados. As técnicas usadas em Economia da Saúde, dificilmente, capturam todo o benefício dos tratamentos das doenças mentais. Isto se reflete na quantidade e forma como os recursos são alocados para a Saúde Mental. Há muito o que se discutir sobre o valor da saúde, mas é necessária uma discussão mais detalhada sobre valor da saúde mental. Os instrumentos disponíveis para mensurar os ganhos em saúde mental concentram-se na alteração da quantidade dos sintomas mentais, na melhora da funcionalidade de um modo global. Apesar do QALY ser utilizado na Saúde Mental, há vários problemas com esta medida para aferir o valor do ganho em saúde mental. Ainda que seu valor seja reconhecido, haverá repercusão no montante investido em saúde mental? A equidade é, frequentemente, defendida como um modo de prover os serviços de saúde de uma forma mais justa, dando igual acesso às pessoas de maior vulnerabilidade econômica. As pessoas com doenças mentais também apresentam alta vulnerabilidade quanto às perdas de oportunidade, de desempenho social, econômico e psicológico. O que falta para que o valor da saúde destas pessoas seja considerado? O que faz um sociedade ser solidária apenas com um determinado tipo de adoecimento e sofrimento? Leitura complementar Garrinson LP et al. Toward a Broader Concept of Value: Identifying and Defining Elements for an Expanded Cost-Effectiveness Analysis. Value In Halth 2017; 20:213-216. Perfetto et al Value to Whom? The Patient Voice in the Value Discussion. Value in Health 2017; 20:286-291. Razzouk, D. Mental Health Economics: The costs and benefits of psychiatric care. Cham, Springer International Publishing, 2017. Shah, K., Praet, C., Devlin, N., Sussex, J., Appleby, J. and Parkin, D. Is the aim of the English health care system to maximize QALYs? Journal of Health Services Research & Policy, 2012;17(3), pp.157-163. https://www.ohe.org/publications/aim-health-care-system-maximise-qalys-investigation
0 Comentários
Seu comentário será publicado após ser aprovado.
Enviar uma resposta. |
Prof Dra Denise RazzoukPsiquiatra e professora universitária, com pós-doutorado em Economia da Saúde Mental. Arquivo/archives
Outubro 2020
|