Independentemente de má gestão, subfinanciamento, potenciais corrupções e ineficiências relacionadas ao SUS, gostaria de trazer um tópico bem polêmico e muitas vezes mal interpretado. Não faltam exemplos na mídia e rede sociais de pessoas que questionam o por quê do Governo não pagar o tratamento custoso e não incluído na lista do SUS para uma determinada pessoa enquanto uma infinidade de pessoas morrem por falta de acesso a tratamentos básicos e não custosos incluídos no SUS. É justificável "driblar" as regras que orientam o uso dos recursos do SUS em nome de "melhorar a saúde ou dar conforto para um único indivíduo"?
Tenho certeza de que muitas pessoas frente a esta indagação responderão, rapidamente, com um solene SIM, com convicção absoluta de que esta atitude não prejudica ninguém e que todos os recursos tem que ser gastos para o cuidado de um indivíduo, independentemente do tratamento ser eficaz, paliativo ou nem testado! Seja um profissional de saúde que quer fazer "qualquer coisa" para ajudar o seu paciente, seja a família desesperada com o sofrimento de seu ente querido, seja um juiz preocupado em tomar uma decisão justa e acertada para o indivíduo, todos nós carregamos o ônus destas escolhas apesar de boas intenções. O cerne da questão não é negar que todo o indivíduo tenha o direito à saúde e ao tratamento digno, independentemente de sua condição. O maior dilema está no fato de que "aceitamos" a morte de alguns e "escolhemos", ainda que inconscientemente, quem será salvo ou beneficiado pelo uso de recursos! Vou citar dois exemplos que constituem um dilema ético para ilustrar a atitude de profissionais de saúde e da sociedade quanto à escolha e à aceitação ou não da morte de alguns em benefício de outros. No ano de 2017, foi publicado no The New England of Journal of Medicine o relato de um cirurgião que realizou a separação de duas meninas gêmeas siamesas, sabendo que uma delas teria grande possibilidade de morrer em decorrência desta cirurgia. Este caso suscitou opiniões e sentimentos divergentes entre os profissionais de saúde. A decisão polêmica não era de caráter técnico, apenas, mas estava basicamente ligada a valores individuais, culturais e legais, além do dilema ético. Temos, aqui, um exemplo dramático de que uma intervenção médica pode "salvar uma vida" às custas de outra morte, com a anuência de parte da sociedade. Entretanto, muitos procedimentos e intervenções que "salvam vidas" também, consomem recursos que poderiam salvar outras vidas! Vamos imaginar uma situação em que todos os recursos que seriam destinados para salvar 1000 crianças fossem direcionados para tratar apenas uma criança em estado terminal com algum tratamento custoso. Por que "aceitamos" a morte de 1000 crianças para cuidar de uma única criança? Obviamente, é inegável que todas as crianças são importantes, mas se nossas ações causam este tipo de redirecionamento de recursos, podemos ficar tranquilos de que fizemos o melhor para salvar/cuidar de uma criança, independentemente, dos prejuízos às outras crianças? Embora esta decisão atormente muitos gestores, a alocação de cuidados em saúde é, indiretamente, "decidida", também, pelo modo de como os recursos são, de fato, consumidos. Esta situação hipotética ocorre, diariamente, no SUS. O uso dos recursos do SUS é, frequentemente, alterado através de ações individuais em que laudos e diagnósticos são potencialmente direcionados para a obtenção de uma medicação ou intervenção de alto custo. Ou seja, os recursos são desviados de um grupo de pacientes para outro(s) com o intuito de "salvar alguém". O desvio de recursos, nestes casos individuais, não ocorre, portanto, a partir das análises que gestores e comitês técnicos utilizam para decidir como garantir a melhor saúde possível de uma população. O mesmo se aplica à judicialização, quando muitos pacientes e familiares são incentivados a procurar o serviço judiciário a fim de obter um tratamento não disponível no SUS. Não se trata aqui de "julgar"a decisão judicial, mas de se analisar as consequências do direcionamento de recursos para um grupo de pessoas. Um dos alicerces da Economia da Saúde é centrado no fato de que se deve promover o bem-estar de um indivíduo sem prejudicar o outro e que a alocação eficiente de recursos obedeceria este princípio. Porém, na prática, o ganho de saúde de um não significa que não houve prejuízo para outro que necessitasse do mesmo recurso. Embora os princípios de não provocar danos e o de promover a saúde do individuo sejam os norteadores da prática médica, todas as nossas decisões apresentam um ônus, um custo de oportunidade, no qual alguém ou algum grupo está sendo prejudicado em prol de produzir benefício para outros. Há muitos problemas no SUS. Ações heróicas individuais não contribuem para um SUS melhor e mais justo. Se algum tratamento muito necessário está ausente no SUS, os profissionais de saúde, pacientes e familiares podem e devem participar para aprimorar e modificar o uso de recursos do SUS. Além disso, o CONITEC abre consultas públicas para a introdução de novos tratamentos e tecnologias. O Ministério da Saúde também faz consultas públicas a cerca de seus protocolos e diretrizes. O SUS não precisa de "remendos" e "jeitinhos" para driblar o sistema. O SUS precisa de todos nós, atuando para que os serviços de saúde melhorem de qualidade e que não apenas alguns poucos recebam o melhor tratamento. As regras podem ser boas ou ruins, e muitas vezes, precisam ser mudadas. As avaliações das políticas públicas, protocolos clínicos e funcionamento dos serviços precisam ser, periodicamente, avaliados para corrigir as muitas distorções e ineficiências existentes. Por outro lado, uma gestão transparente, principalmente, de como os recursos são usados e de suas justificativas cabíveis aos seus usos poderia contribuir para um melhor uso dos recursos do SUS. O SUS é da sociedade brasileira e deve contemplar coletivamente suas necessidades, obviamente dentro de suas inevitáveis limitações de recursos. Estas limitações precisam ser discutidas com todos nós! E a Economia da Saúde é um facilitador na melhor compreensão e consciência do uso de recursos da saúde. A pergunta que deixo para reflexão é: Por que nos indignamos com a desassistência de um indivíduo e seguimos indiferentes aos muitos outros que morrem anônimos sem nenhum tratamento? Leitura complementar Razzouk D. Why there needs to be some consideration of health economics in clinical decision making: The views of a clinician. Disponível https://www.findeconjobs.com/pages/8130-why-there-needs-to-be-some-consideration-of-health-economics-in-clinical-decision-making-the-views-of-a-clinician Brian M. Cummings, et al.Case 33-2017 — 22-Month-Old Conjoined Twins
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Prof Dra Denise RazzoukPsiquiatra e professora universitária, com pós-doutorado em Economia da Saúde Mental. Arquivo/archives
Outubro 2020
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