O projeto de Lei 415/2015 está em trâmite na Comissão de Assuntos Sociais (a ser discutido na reunião de 8 de agosto de 2018) para se aprovar o limiar de custo-efetividade no Brasil(Soarez et al, 2017) nas decisões de incorporação de novas tecnologias e tratamentos. Este projeto visa alterar a lei orgânica 8080 que dispõe sobre as condições para a promoção e recuperação da saúde e sobre o funcionamento dos serviços.
Qual é a consequência deste projeto para o SUS e para a saúde do cidadão brasileiro? Antes de discutirmos o impacto deste projeto na saúde pública, vou introduzir alguns conceitos básicos para facilitar oo entendimento do projeto. A Economia da Saúde fornece ferramentas para dar subsídios às decisões entre duas ou mais alternativas e não para substituir os gestores e a sociedade na escolha de como usar os recursos escassos. Os princípios que regem a Economia da saúde visam, de modo geral, maximizar o bem estar social, e no caso da saúde, maximizar o ganho de saúde, respeitando os valores e a preferência da sociedade. O conceito de maximização de saúde implica em privilegiar a alternativa que produz mais saúde. Isto não significa que todas as pessoas terão ganhos, pois se um tratamento produzir mais ganhos para uma doença do que para outra, então, somente um grupo receberá o tratamento. Mas, como este ganho de saúde é mensurado? Há várias formas de se medir saúde(Razzouk, 2017): 1. Medindo-se a melhora de um grupo de sintomas (escalas de sintomas) de uma determinada doença. 2. Medindo-se a diminuição a mortalidade e incapacidade produzida por uma doença (DALY) 3. Medindo-se o ganho de expectativa de vida e de qualidade de vida em um único indicador (QALY). Existe um pressuposto de que melhorar 1 QALY no tratamento do câncer seria igual a melhorar 1QALY no tratamento da pneumonia. Será isso verdade?(Wetering et al, 2016) Há muita discussão a este respeito. 4. Medindo-se a preferência do indivíduo por um tratamento e estado de saúde e convertendo esta preferencia em valor monetário (custo-benefício) A escolha destes métodos implica em resultados e em escolhas diferentes. Isto quer dizer que a alocação de recursos vai variar de acordo com o critério adotado para se determinar a relevância de um tratamento. O conceito de cuto-efetividade não é suficiente para a tomada de decisão na alocação de recursos e nem para determinar o que é mais relevante para a saúde de uma população. O conceito de custo-efetividade fornece um valor (razão) que demonstra o quanto é necessário pagar para que uma alternativa seja mais custo-efetiva do que outra. Em outras palavras, o quanto é necessário pagar por um acréscimo na saúde. A razão de custo-efetividade é dada pela fórmula: ICER = Custo tratamento novo - tratamento atual Efeito (melhora dos sintomas) do novo - Efeito tratamento atual Se ao compararmos antidepressivos A(novo) e B para o tratamento de depressão e usando a escala de Hamilton (sintomas de depressão) para medir a melhora dos sintomas, e encontrarmos o valor de ICER de R$ 20,00, isto significa que para cada um ponto de melhora a mais na escala de Hamilton que o antidepressivo A oferece em relação ao antidepressivo B, é necessário pagar R$20,00. Se ao invés de usarmos a escala de Hamilton, usássemos o indicador QALy, diríamos que para cada 1 QALY a mais gerado pelo antidepressivo A, seria necessário pagar R$20,00 (ou resumindo 20 reais por QALY adicional). Na prática, é relevante pagar R$20,00 por uma melhora de 1 ponto na escala de Hamilton? Vale à pena? Ou ainda, vale à pena pagar R$20,00 por QALY adicional (lembrando que 1 QALY equivale a 1 ano de saúde perfeita). O ICER sózinho não responde a esta pergunta!. Para facilitar a decisão, foi criado uma espécie de limite máximo para pagar por 1 QALY: o limiar de custo-efetividade. Desta forma, se o limite for R$ 100,00 por QALY, logo, seria vantajoso pagar pelo custo-efetividade do antidepressivo A. Mas, como se define este limiar de custo-efetividade? Há vários métodos para definir este limiar (Vallejo-Teres et al., 2016; Baker et al., 2011, Thokala et al,2018). Não é o escopo deste texto discutir tais métodos, mas, é importante ressaltar que ainda não há consenso sobre estes métodos e que um país não pode simplesmente importar o limiar de outro país ou arbitrar um valor sem dados empíricos de seu contexto. Apesar do limiar de custo-efetividade fornecer um valor numérico que aparentemente soluciona objetivamente o que deve ou não ser pago, há muitos problemas e perigos em se adotar este limiar, principalmente, em um país como o Brasil em que os conhecimentos e estudos empíricos de Economia da Saúde são incipientes. O mau uso deste limiar pode trazer consequências desastrosas, piorando a ineficiência do sistema de saúde. Problemas do limiar de custo-efetividade: 1. Mensuração do QALY - Existem vários métodos para medir o QALY e cada estudo usa um método diferente, comprometendo a comparação entre os tratamentos. Não é possivel importar valores de QALY de outros países para o nosso contexto. Embora isso seja uma prática corrente, são necessários estudos empíricos que levem em conta a preferência da sociedade brasileira, as suas variações de efetividade de acordo com o contexto e características dos usuários. Um mesmo tratamento para depressão pode resultar em QALYs diferentes dependendo do contexto, região, comorbidade, adesão a tratamento, etc. Não temos dados de qualidade suficiente sobre o QALY produzido pelas intervenções no contexto brasileiro. 2. Relevância do QALY O pressuposto de que 1 QALY é igual para todos os tratamentos é questionável. O valor social de alguns tratamentos podem ser mais relevantes do que outros mesmo que dois tratamentos gerem a mesma quantidade de QALYs. O estudo de Wettering et al (2016) mostra bem isso, o quanto a população privilegia a gravidade da doença, a idade, e o nível de qualidade de vida, além de outros fatores. Isso é parcialmente corrigido em alguma situações atribuindo-se pesos diferentes ao QALY ou flexibilizando o limiar de custo efetividade (por exemplo, ter um limiar diferente para câncer e doenças raras). Porém, não há transparencia na atribuição destes pesos. A doença mental é claramente estigmatizada e o QALY não captura os benefícios do tratamento mental, o que prejudicaria o investimento em tratamento em saúde mental, por exemplo (Razzouk, 2017). 3. Equidade e QALY Maximizar a saúde pode parecer promissor, porém, investir somente naquelas intervenções que maximizam a saúde para um grupo é deixar sem tratamento outros grupos que poderiam ter algum ganho de saúde, comprometendo a equidade. 4. O QALY é uma medida com sérias limitações. Não está disponível para todas as intervenções e não é adequada para todas as intervenções. A comunidade científica em Economia da Saúde está claramente dividida, Enquanto alguns grupos defendam ardorosamente o QALY (Neuwman, 2018) e o limiar de custo-efetividade, outros grupos advogam que a tomada de decisão seja abrangente e use outras abordagens para valorar a saúde e os tratamentos e que também leve em conta a perspectiva do paciente e da sociedade (Lakdawalla DN et al, 2018). 5. Limiar de custo-efetividade e desinvestimento Quando se adota o limiar de custo-efetividade, foca-se no custo de oportunidade. Isto quer dizer que se uma nova intervenção fornece maior benefício em gerar saúde (produz mais QALYs), então, o investimento deve ser feito nesta alternativa, porém, deve-se desistir de investir em um programa já existente que gera menos QALY. Quais as consequências disto? Imagine que um tratamento para hipertensão gere 4 QALYs e que está em vigor no sistema de saúde. Um novo tratamento que gere 5 QALYs para o tratamento de pneumonia gera "mais saúde". Então, seria lícito e ético deixar de tratar pessoas com hipertensão e tratar pessoas com pneumonia com o novo tratamento? Quais seriam as consequências desta decisão? Por outro lado, estabelecido o limiar de, por exemplo, R$10.000,00 por QALY, se um novo tratamento fosse capaz de curar um determinado tipo de cãncer e o custo fosse R$50.000,00 por QALY, seria justo e aceitável ignorar tal tratamento porque não está abaixo do limiar? E se um novo tratamento para uma doença de baixa morbidade e mortalidade fosse R$9900,00? Ela deveria ser incluída no pacote assistencial independentemente das necessidades da população e das alternativas disponíveis? 6. Limiar de custo-efetividade e abusos Uma vez explicitado o valor do limiar de custo-efetividade, é provável que aqueles que queiram ter suas tecnologias incorporadas ao sistema de saúde, "adaptem" os seus valores para a faixa do limiar de custo-efetividade. Isto facilitaria a incorporação de novas tecnologias apenas por estarem abaixo do limiar e não, necessariamente, porque são relevantes e prioritárias. Por outro lado, a adoção de um limiar poderia influenciar o gestor de tal modo a não avaliar detalhadamente os vantagens e desvantagens de incorporar a tecnologia e aprová-la, automaticamente, de acordo com o limiar, isentando-se da responsabilidade de escolha. Além disso, a participação e a preferência da sociedade ficaria relegada a um segundo plano, ou até seria ignorada. O autor do projeto Lei 415 acredita que o limiar de custo-efetividade vai acabar com o desperdício, com a judicialização do tratamento e aumentar a eficiência do sistema de saúde brasileiro. Ele critica o CONITEC por não apresentar explicitamente os critérios de incorporação de novas tecnologias do SUS. Porém, os que defendem este limiar, também arbitram valores baseados em países europeus, em valores norte-americanos e em critérios abandonados pela OMS de 3 x a renda per capita do país! O Reino Unido tem décadas de expertise em Economia da Saúde e enfrenta duras críticas com o limiar de custo-efetividade, mesmo com certa flexibilização deste valor. Os Estados Unidos e o Canada não tem um limiar explicito, apesar de algumas referências duvidosas de um limiar próximo aos 50 mil dolares por QALY. Muitos países europeus advogam uma avaliação econômica sob a perspectiva da sociedade e com critérios voltados para o contexto nacional. Cresce a tendência de que a tomada de decisão seja baseada em múltiplos critérios e em abordagens abrangentes e não focadas, exclusivamente, em limiar de custo-efetividade. O uso do QALY está na berlinda nas discussões de Economia da saúde. É possível que ele seja substituído por outros indicadores na próxima década. O Brasil precisa de estudos empíricos de custo-efetividade que usem dados nacionais e levem em conta as particularidades e as necessidades de nosso contexto. Nem tudo que é custo-efetivo precisa ser incorporado no sistema de saúde. É preciso levar em conta um conjuto de critérios como o impacto no orçamento, as prioridades em saúde, o burden, as características epidemiológicas da população, a equidade, a ética, as preferências da sociedade, as alternativas disponíveis, as questões culturais e o tipo de sistema de saúde. Precisamos encontrar uma solução adequada ao nosso país. Isto só é possível através de um melhor conhecimento do nosso contexto, estudos com dados nacionais e avaliações constantes das politicas de saúde. Importar o limiar de custo-efetividade não acabará com o desperdício. Pelo contrário, qualquer tratamento que caia abaixo do limiar será incorporado mesmo sem necessidade ou relevância e, talvez, um tratamento muito relevante nunca seja incorporado. É preciso refletir que a decisão sobre a incorporação do tratamento ao sistema não deve ser baseada,exclusivamente, no seu custo, mas em quanto é relevante, sustentável, prioritário, factível e necessário. Critérios explicitos, transparentes e com a participação da sociedade são salutares, mas, o limiar de custo-efetividade não dará esta resposta, principalmente, neste cenário atual. Leitura complementar Baker R et al. Searchers vs surveyors in estimting the monetary value of QALY: resolving a nasty dilemma for NICE. Health Economics Policy and Law 2011:6:435-447. Lakdawalla DN et al. Defining elements of value in health care´A health economics approach: An ISPOR Special Task Force Reporte 3. Vallue in Health 2018:21:131-139. Neumann PJ. QALYs in 2018- Advantages and concernss. JAMA 2018; 319:24:2473-2474. Razzouk, D. Outcomes measurement for economic evaluation. In Razzouk D.Mental Health Economics: The costs and benefits of psychiatric care. Springer International Publishing,pp 35-53, 2017. Soarez P , Novaes HMD. Cost-effectiveness thresholds and the Brazilian Unified National Health System. Cadernos de Saúde Publica 2017; 33:4:e0040717.cadernos.ensp.fiocruz.br/csp/artigo/75/limiares-de-custo-efetividade-e-o-sistema-nico-de-sade Thokala P et al. Cost-effectiveness thresholds: the past,the present and the future. PharmacoEconomics 2018:36:5:509-522. Vallejo-Torres L et al. On the estimation of the cost-effectiveness threshold: Why, what, how? Value in Health 2016; 19:558-566. Wittering EJ et al. Are some QALYs more equal than others? Eur J Health Econ 2016; 17:117-127.
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Prof Dra Denise RazzoukPsiquiatra e professora universitária, com pós-doutorado em Economia da Saúde Mental. Arquivo/archives
Outubro 2020
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