É interessante notar que algumas pessoas possam se irritar ao comprarem um medicamento sem princípio ativo ("com farinha dentro"), mas não se importam se este gasto for realizado com recursos públicos! Um indivíduo é livre para escolher como gastar seus recursos, ainda que a assimetria de informação (desconhecimento técnico) possa levá-lo(a) a fazer escolhas pouco vantajosas. Porém, o uso de recursos públicos não pode e nem deve ser alocado segundo princípios individuais. Um gestor administra os recursos que toda a sociedade se esforça para produzir. Desta forma, os investimentos e gastos públicos precisam ser destinados para atender as necessidades e prioridades da saúde de uma população. A tomada de decisão é sempre um ato complexo que envolve uma combinação de critérios que precisam ser bem embasados.
O primeiro embasamento é o técnico-científico: o tratamento é de fato eficaz, eficiente, seguro, livre de danos substanciais e largamente testado em pesquisas científicas de alta qualidade? Ignorar os princípios científicos resulta em sérios danos para a população. Todo o avanço da Medicina e de outras áreas da Saúde ocorreu em decorrência dos avanços científicos. Se a expectativa de vida aumentou, isto ocorreu, principalmente, pelo avanço científico! O segundo embasamento (não menos científico) é o epidemiológico: quais são as necessidades da população, quantas pessoas necessitam de intervenções, em qual contexto é necessário disponibilizar tratamento (áreas de risco), quais são as prioridades imediatas e a médio prazo e quais devem ser as medidas preventivas? O terceiro embasamento é o da disponibilidade de recursos: quantos recursos estão disponíveis, quantos recursos são necessários,quais as alternativas custo-efetivas, quais as estratégias para otimizar recursos?Qual será o período de tempo em que será possível financiar estas intervenções? Quais serão as consequências destas escolhas (custo de oportunidade)? O quarto embasamento engloba a ética e a equidade: de que forma uma decisão provoca danos a outros ? Como distribuir os recursos de tal forma que todos que precisem possam recebê-los?Como posso justificar a minha decisão em relação à sociedade? A decisão é justa e aceitável? (Leia também o texto Ferraz, et al.2009). Estes são alguns critérios que os gestores precisam levar em conta na alocação de recursos da Saúde. Uma má escolha implica em um alto custo de oportunidade, isto é, em danos para outras pessoas que não receberão tratamento. Nesta semana, o Ministério da Saúde anunciou a inclusão de 10 "terapias alternativas" no SUS, sob a designação de Práticas integrativas: apiterapia, aromaterapia, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, geoterapia, hipnoterapia, imposição de mãos, ozonioterapia e terapia de florais!(Revista Veja, 2018) Algumas pessoas comemoraram a decisão sem pensar nas consequências, enquanto que pesquisadores, profissionais de saúde, conselhos e instituições de saúde manifestaram seu repúdio com justificativas bem embasadas. A ideia deste post não é criticar opiniões pessoais, nem defender classes profissionais, partidos políticos ou outros conflitos de interesse. O objetivo deste post é o de alertar e o de informar como uma decisão deste tipo impacta na saúde das pessoas, em especial, naquelas que dependem, exclusivamente, do SUS. Convido a todos para uma reflexão isenta de paixões e gostos pessoais. A denominação tratamentos "alternativos" ou "práticas integrativas" pode sugerir pelo menos três interpretações: a)a de que é possível escolher entre a prática alternativa e o tratamento convencional; b) a de que práticas integrativas são mais abrangentes e completas e que tratam o indivíduo como um todo (holística); c) que estas práticas são complementares, eficazes e já comprovadas por estudos prévios. A primeira interpretação é equivocada. Nenhuma destas práticas pode substituir os tratamentos convencionais. Não é uma questão de preferência, é uma questão de eficácia, segurança e efetividade. Substituir um tratamento convencional por um alternativo pode causar danos, incluindo a morte. Toda nova prática e tratamento precisam ser comparados com as práticas convencionais para se verificar quais os benefícios que eles realmente proporcionam, quais os seus riscos e em quê eles são melhores ou piores do que os tratamentos disponibilizadas no SUS. Isto só é possível através de pesquisas científicas de boa qualidade. Ainda que algumas pessoas possam relatar bem-estar com essas práticas, esta não é uma justificativa suficiente para se consumir os recursos do SUS. Existe o efeito placebo e gastar recursos com ele não é a melhor solução! A definição de saúde e de promoção de saúde tem sido muito banalisada, levando ao entendimento de que qualquer ação que promova sensação de bem-estar é promotora de saúde. Isto não é verdade! E o SUS não é um centro de entretenimento e de promoção de satisfação e bem-estar no sentido genérico. A necessidade mais premente da população está no controle das doenças infecciosas, cardiovasculares, diabetes, obesidade, doenças mentais, câncer, mortalidade infantil, desnutrição, dentre outras. Portanto, os recursos precisam ser direcionados para o tratamento eficiente destas necessidades e não podem ser desviados para práticas não devidamente testadas. A primeira consequência é que faltem recursos para tratar, por exemplo, uma criança com doença infecciosa e que necessite de um antibiótico. Parece improvável? Não. No Estado do Rio de Janeiro, muitos usuários do SUS recorreram à judicialização para comprar AAS (acido acetil salicílico), digoxina (medicação para doença cardíaca), furosemida (diurético), captopril (para hipertensão). Todas estas medicações estavam incluídas na lista de medicamentos do SUS mas não foram fornecidas!(Pepe et al, 2010). Em outro estudo sobre a judicialização no Estado de Minas Gerais, verificou-se que apenas 53,5% das medicações solicitadas por via judicária tinha eficácia comprovada (Machado et al, 2011)! A segunda interpretação diz respeito ao termo holístico, ou seja em sua integralidade. O uso do termo holístico é, frequentemente, mal empregado. Em geral, é utilizado para referir tratamentos humanizados e individualizados e não aqueles focados na doença. Mais uma vez, há um equívoco. A abordagem do profissional de saúde tem que ser "holística", humanizada e individualizada, isto é inquestionável! Porém, as intervenções são específicas para um determinado fim. Não existe nenhum tipo de intervenção ou prática que cure todas as doenças/sintomas e que trate o indivíduo como um todo!!! Tratar um indivíduo como um todo é avaliar suas necessidades físicas, mentais, dentro do seu contexto socio-cultural e econômico, através de uma relação profissional humanizada, mas, com o emprego de intervenções bem testadas e seguras. A apiterapia foi uma das práticas "holísticas" incorporadas no SUS. Qualquer medicação nova precisa ser testada quanto aos efeitos adversos. O uso de veneno de abelha(apiterapia) pode causar choque anáfilatico e morte, além de outros efeitos. Ainda que alguns estudos estejam em andamento sobre esta substância, a sua incorporação ao rol de procedimentos do SUS (leia este texto sobre apiterapia escrito por um pesquisador PhD em Epidemiologia, Thomas Pirelli : O veneno da abelha foi considerado de alto risco em mais de 145 pesquisas no mundo!) é prematura e irresponsável. Terapias denominadas "naturais", "não industrializadas" também podem causar morte e efeitos adversos. O maior problema destas terapias é o de não ser devidamente testadas quanto aos riscos e aos efeitos. A terceira interpretação é sobre as pesquisas já realizadas com estas práticas. Muitas pesquisas que relatavam efeitos benéficos destas práticas tinham problemas graves de metodologia científica, isto é, a qualidade científica não era suficiente para que os resultados fossem aplicados. Outras relataram os efeitos adversos, mas a maioria das pesquisas ainda não permitem confirmar tais efeitos. Um dos exemplos é sobre a imposicão das mãos. À título de exemplo, uma pesquisa (Marta et al, 2010) concluiu que o toque terapêutico é efetivo na diminuição da dor, nos escores de auto-avaliação de depressão e na melhora da qualidade do sono. Quais os problemas metodológicos desta pesquisa? O tipo de estudo para avaliar se um tratamento apresenta eficácia e efetividade é o ensaio clínico. Este tipo de estudo prevê uma comparação entre dois grupos: um que recebe o novo tratamento e outro que recebe o tratamento atual ou ainda um placebo. As pessoas que participam deste tipo de experimento têm que ser distribuídas para os diferentes grupos SEM saber que intervenções vão receber e sem escolher os grupos (a isto dá-se o nome de randomização). Além disto, quem avalia os efeitos não pode saber a que grupo os individuos pertencem (A isto dá-se o nome de duplo cego: nem o indivíduo e nem o avaliador sabem da intervenção) . Além disto, é necessário escolher um único efeito a ser estudado e determinado o tamanho da amostra (isto é, o número de participantes no estudo).Não vou me alongar mais em outros detalhes. No caso deste estudo, os autores relataram terem feito um ensaio clínico, sem grupo controle, só comparando o antes -depois. Isto não é aceitável do ponto de vista metodológico e este estudo não constitui um ensaio clínico. Além disto, o tamanho da amostra foi de 30 participantes, o que é insuficiente. A avaliação foi feita imediatamente antes e depois da sessão, o que poderia propiciar resultados distorcidos (vièses). Além disto, o teste estatístico usado não foi adequado. Enfim, este é um exemplo de pesquisa científica cujos resultados não podem ser usados para embasar uma decisão de incorporação desta prática no SUS. Quero deixar algumas questões para reflexão: - É ético usar os recursos do SUS, que poderiam ser usados para salvar a vida de crianças e adultos, em práticas não suficientemente testadas? - É justo adotar práticas não testadas e não prioritárias às necessidades da população, principalmente para os que dependem exclusivamente do SUS? - É justificável não fornecer tratamentos e medicamentos que já estão incorporados ao SUS por "falta de recursos" para incluir novos procedimentos não prioritários e não eficazes? -É economicamente justificável consumir os recursos do SUS na judiciliazação se estes tratamentos poderiam ter sido disponibilizados de acordo com a necessidade impedindo tais ações? -Há recursos financeiros em excesso que justifiquem a incorporação de práticas não testadas? - Há embasamento técnico para incorporar tais práticas sem o aval de comitês técnicos especificos para a avaliação de novas práticas e tecnologias? - Há verificação das potenciais consequências para tal decisão? Quem ganha e quem perde? Leitura complementar FERRAZ, Octávio Luiz Motta and VIEIRA, Fabiola Sulpino. Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante. Dados [online]. 2009, vol.52, n.1, pp.223-251. ISSN 0011-5258. http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52582009000100007 Pepe et al. Caracterização de demandas judiciais de fornecimento de medicamentos “essenciais” no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 26(3):461-471, mar, 2010 Machado, M et al. Judicialização do acesso a medicamentos no Estado de Minas Gerais, Brasil.Rev Saúde Pública 2011;45(3):590-8. Marta, et al. Efetividade do Toque Terapêutico sobre a dor, depressão e sono em pacientes com dor crônica: ensaio clínico.Revista da Escola de Enfermagem da USP, 2010;.44:4:1100-1106.
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Nos posts anteriores, eu expliquei o valor da eficácia e da efetividade do tratamento. Eficácia se refere à capacidade de um tratamento produzir um determinado efeito (melhora de sintomas, por exemplo). A efetividade se refere à manutenção deste efeito em contextos reais e heterogêneos. Por exemplo, se uma medicação é eficaz para diminuir os sintomas depressivos, a sua efetividade pode variar se o paciente não tomar a medicação adequadamente, produzindo um efeito menor do que a medicação seria capaz de proporcionar. No custo-efetividade de um tratamento, queremos saber o quanto pagaremos por um efeito (benefício) em um contexto real. O custo-efetividade é sempre uma comparação entre as alternativas que tem eficácia comprovada. Queremos saber qual delas é mais vantajosa em termos de custos e benefícios.
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Prof Dra Denise RazzoukPsiquiatra e professora universitária, com pós-doutorado em Economia da Saúde Mental. Arquivo/archives
Outubro 2020
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